Mário abanou fortemente a cabeça, esfregando os olhos de seguida, numa atitude de quem queria apagar o que tinha pensado. Por vezes sentia o forte desejo de apagar Alice da sua vida. A sua relação com ela era de uma espécie de ‘amor-ódio’ e não de pura amizade. Eles tanto trocavam sinais de afecto, como logo a seguir guerreavam por causa de coisas de que mais ninguém se lembraria discutir. Mário resolveu ligar a televisão para se distrair um pouco. Pegou no controlo remoto e foi percorrendo um a um, os canais que o aparelho lhe oferecia. Ele não gostava muito de ver televisão, porque infelizmente aquela caixa que revolucionara o mundo, já não era a mesma coisa. Na realidade, Mário vivia numa altura em que se assistia a um ‘nivelamento por baixo’ através de uma produção crescente de êxitos fáceis, onde a violência, a manipulação de sentimentos e a graça rasteira ocupavam um lugar de destaque. Mário, à medida que ia mudando de canal, via pessoas. Ao mesmo tempo interrogava-se se elas não estariam ali a perder os limites da própria dignidade. Mário ficava agoniado, sempre que via os participantes daqueles programas, deixando-se filmar em momentos que deveriam ser de intimidade, ou a permitirem ser vistos em poses de palhaço pobre. A televisão havia deixado de ser prioritariamente um veículo de cultura e informação. Era agora uma caixa mágica donde saíam viagens, dinheiro fácil, electrodomésticos e até, como no caso do programa que Mário agora assistia, a solução para frustrações afectivas ou rupturas familiares. A televisão, na sua opinião, tinha-se tornado uma espécie de Senhora de Fátima electrónica, que pedia muito pouco em troca: apenas que as pessoas se sentassem frente a ela, ouvindo e vendo sem grande atenção, até que haja alguma coisa que desperte. E Mário era abertamente contra a violência gratuita na televisão, contra a devassa da intimidade de uma família em crise, contra a exploração de sentimentos. Para ele, não havia melhor momento – aquele sim, verdadeiramente mágico – que fazia com que alguém lá em casa desligasse aquele simples botão para comentar o programa violento ou simplesmente para conversar. E desligou a televisão.