Olhou para o céu. Naquele momento, os tímidos raios de sol tinham sido vencidos por uma típica nuvem de inverno. Foi então que Mário reparou nos enfeites que decoravam a rua: luzes em arcos coloridos, a figura de um homem de barbas muito brancas, todo vestido de vermelho. Eram sinais que indicavam uma época que se avizinhava, onde era tradição adquirir um espírito diferente dos restantes meses do ano.
- Sempre com a cabeça nas nuvens, caramba! – dizia uma voz feminina – Mas desta vez parece que a deixaste lá, vendo pela forma como olhas lá para cima...
Mário voltou a cabeça para ver de quem era aquela voz:
- Sara! Bom dia! Ó pá, já não te via há que tempos!
Sara era uma jovem que estudara com ele até terem seguido vias diferentes quando entraram para a faculdade,ou melhor, tinham deixado de se ver desde a altura em que ela entrara para a faculdade e ele não. No tempo em que estudavam juntos, eram os dois "unha com carne. O ‘duo dinâmico’, era assim que se chamavam, sempre que eram bem sucedidos nas alturas dos testes, quando conseguiam copiar sem o professor ver, utilizando ‘técnicas sofisticadas’.
- Que bom que é encontrar-te, vadio! – dizia ela, ao mesmo tempo que o cumprimentava com dois beijos.
- Igualmente, Sara. Mas vadia deves ser tu lá na universidade. Isto agora é que deve ser só farra, não?. A tua cadeira favorita deve ser ‘Sociologia Nocturna’, ou por aí...
- Lá estás tu... nunca perdes esse teu sentido de humor mais seco que um bacalhau... e por falar em bacalhau, não sentes já aquele cheirinho de Natal?
- Pois, pois... Eis a épica em que se celebra o nascimento Daquele em quem cada vez mais são os que deixam de acreditar, mas apesar disso, não deixam de celebrar o Seu nascimento. Está a chegar a altura do ano em que as pessoas se lembram que afinal os pobres existem e até precisavam de um pouco de dignidade nesta altura do ano, tão especial, mas são capazes de entrar numa loja de roupa e comprar um casaco para a tia, umas calças para o filho, um anel para a namorada, um chapéu para a sogra e não se lembrarem, já agora, de gastar mais um pouco e oferecer um agasalho ao pobre que pede esmola à porta dessa mesma loja... isto porque o Menino Jesus nasceu pobre e foram reis, os reis Magos que lhe trouxeram as prendas.
- Quem má onda, Mário. Mas sinceramente, acho que o que dizes tem uma ponta de verdade. Afinal de contas, os recém nascidos e os pobres, é que deviam ser lembrados nesse dia. Ás vezes é preferível dar algo mais necessário do que apenas dinheiro. Uma pessoa que não esteja habituada a geri-lo, não o irá usar de forma útil em seu benefício... Talvez fosse melhor oferecer uma refeição quente ou um agasalho confortável, do que moedas, que se juntando à sovinice das pessoas, ao fim do dia mal dá para alguma coisa.
- Mas quando algumas pessoas se cruzam com um pobre, nesse mesmo momento ele torna-se invisível e inaudível. E tu nem imaginas o quanto dói sentirmo-nos ignorados. Mas a consciência do ‘cidadão’ permanece tão branca como as barbas do Pai Natal... que por sinal também é uma figura que praticamente somos obrigados a esquecer à medida que vamos crescendo.
- Não estou a entender, Mário.
- É simples. Se tu com esta idade, dissesses que acreditavas no Pai Natal, achavam-te ridícula.
- Mesmo não acreditando num Pai Natal concreto deveríamos tentar descobrir o Pai Natal que temos dentro de nós e darmos uns aos outros, prendas que nenhum dinheiro pode comprar: a nossa amizade, afecto, compreensão... enfim, uma montanha de prendas que todos temos tanto para dar, e muitas vezes ficamos apenas à espera que elas nos sejam oferecidas.
- Sabes... quando achamos que não conseguimos obter essas ‘prendas’ que tanto queremos, esperamos por esta altura para as comprarmos com as outras prendas. Conheço pessoas que se tornam automaticamente solidárias e compreensivas, apenas para merecerem um anel bonito ou um perfume caro... e depois... depois esgota-se o sentimento e só resta esperar pelo próximo Natal.
- Caramba Mário... custa a perceber como é que uma pessoa como tu, não se deixe envolver pelo espírito natalício.
- Qual espírito, qual quê... Que queres que te diga? Custa-me a entender como é possível a capacidade que algumas pessoas têm para possuir uma dupla consciência. Num só acto dividem a sua consciência em duas partes: a primeira é aquela que as leva a sentirem-se felizes porque os seus familiares e amigos vão ficar radiantes com os presentes que lhes vão oferecer. Mas ao mesmo tempo a sua consciência já lhes começa a pesar, porque sabem que o dinheiro até era pouco, e tiveram que pedir algum emprestado, ou trabalhar horas extraordinárias para juntar mais algum, sabendo que vão ficar endividados nos próximos meses.
- E queres dizer que assim, a ‘Noite feliz, Noite de amor...’ transforma-se numa noite de arrependimento. É isso que queres dizer?
- Exactamente. Quando o nosso cidadão verificar que “afinal gastei tanto dinheiro neste perfume e a minha mulher não gosta dele...” ou pensamentos sobre os amigos: “Aquele sacana... Então, tanto sacrifício para lhe oferecer aquela garrafa de Whisky, que me custou os olhos da cara, e o filho da mãe só me dá esta caneta de tinta permanente que não vale um chavo...!” Eis aqui então, a noite eleita pelos homens para confraternizarem entre a família que só nesta altura do ano se une, mas esquece-se que teve muitos fins-de-semana ao longo dos meses anteriores e nunca os aproveitou; e onde a intenção de oferecer algo com o objectivo de celebrar mais um ano em que nos encontramos vivos e juntos e temos o prazer de estar presentes com aqueles que mais amamos, e dar o prazer da nossa presença aos que nos amam também. Aí é que reside toda a nobreza do Natal!
Foi então que Sara tentou convencer Mário:
- Mas apesar de tudo isso, o Natal não será tão mau como o descreves. Tenho quase a certeza que quando eras mais pequeno, vivias um enorme entusiasmo, naquela noite mágica em que viria o Pai Natal, trazer-te aquela prenda que durante tanto tempo desejavas e até sonhavas com ela. Aposto que era uma noite repleta de mistério... um mistério tão doce como os doces que estavam em cima da mesa. Até o aroma que pairava no ar, devia ter uma composição completamente distinta. E não me digas que não ficavas com aquele nervoso miudinho, porque querias dormir o mais depressa possível, mas não conseguias, para que no dia seguinte logo de manhã bem cedinho te levantasses muito sorrateiramente para chegar junto ao pinheirinho e rasgares o embrulho do teu presente. E: Alegria!! Alegria!! “Uau !!! O carro telecomandado à distância... E já traz pilhas... ‘Vrum, vrum, vruuuuuuum...’ E lá ias tu pela casa fora com o teu novo carro, guiando com uma tal perícia que faria inveja a muitos condutores de competição.
Mário já não dizia nada. Afinal de contas, o que ela lhe dizia era a mais pura das verdades. Não havia nada que fosse igual àquela noite fantástica.